SOBRE A CIDADE
Rio Grande foi fundada em 1737 pelo Brigadeiro José da Silva Paes, com o intuito de oferecer apoio à Colônia do Sacramento (atualmente parte do Uruguai) e resguardar a posição lusitana na disputa pela região do Rio da Prata. Por isso mesmo, tendo em vista a disputa pela a região, não causa estranhamento pensar que a escolha do local para o assentamento foi fortemente influenciada pela seguridade e pela manutenção da ocupação, sendo estabelecida na margem direita do canal – quando o porto natural estava na outra margem (TORRES, 2010, p. 71) – resguardando a posição lusitana. Essa mentalidade belicosa instaurada na região transparece no comentário de John Luccock sobre Rio Grande, quando, mesmo após o apaziguamento do conflito, afirma no começo do século XIX que “os assuntos militares eram dirigidos energicamente em São Pedro. Na realidade, a cidade é uma guarnição, sendo o Governador seu comandante em chefe” (1975, p. 121).
E isso deve ser considerado também quando pensamos nas condições da geografia do local onde a ocupação do Rio Grande de São Pedro foi planejada: um acesso complicado tanto pelo mar, quanto por terra, onde “as dificuldades”, ao contrário do que geralmente se pensa, “não eram problemas, mas um ardil” (ROSA, 2012, p. 31). Para além das diversas edificações que visavam garantir a presença portuguesa na região, como sugere Saint-Hilaire, a defesa ficou a cargo da própria natureza (1999, p. 61).
Esta natureza inóspita do Rio Grande, se por um lado era vista como uma vantagem estratégica, para a vida cotidiana representava um incômodo que não passou desapercebido e fez-se poético, conforme nos traz Camillo Castello-Branco (1868, p. 156), nos versos de um anônimo da então Vila de São Pedro, que diz o seguinte:
Quase coberta de volante areia
Dos combros que aqui crescem todo ano;
De moscas, pulgas, bichos é bem cheia;
Não sei quem tanto inseto aqui semeia
Para causar as gentes nojo e dano!
De cavalo os dragões mais esforçados,
De voluntários uma legião
Esta é do Rio Grande a habitação
Onde purgando estou os meus pecados.
Mas nem só de injúrias viveu a paisagem saárica do Rio Grande. O tom dourado do horizonte parece menos ameaçador, ao menos para quem percorre esta porção da costa sul-brasileira, e se torna um elemento marcante no olhar, sendo mesmo imortalizado em canções de marinheiros que seguidamente rumavam em direção a Rio Grande.
℗ 1984 Revels Records. Peter Marston, Nigel Nathan e Robert Duncan.
Com o apaziguamento das disputas pela região do Prata, a cidade acabou desenvolvendo um comércio avultado em razão do porto e, ao longo do século XIX, investiu na transformação do ambiente inóspito onde Silva Paes assentara.
O que temos, então, nas primeiras décadas do século XIX, é um Rio Grande que possui “um comércio mais avultado, movimentando somas muito superiores às da antiga capitania de São Paulo” (OSÓRIO apud TORRES, 2010, p. 37), onde os negociantes orgulham-se da sua riqueza e compram “à Secretaria do Estado a comenda da Ordem de Cristo, tida como símbolo de riqueza e fruto da corrupção. Fora do Rio de Janeiro não vi algures um tão grande número de homens condecorados, o que não é outra cousa senão uma das provas da riqueza da região” (SAINT-HILAIRE, 1999, pp. 57-58).
Começamos a vislumbrar a mudança tendente no feitio dos habitantes da cidade. Se, antes, Rio Grande surge como uma fortaleza, como um ponto intransponível a oferecer apoio à expansão portuguesa na região do Prata, posteriormente, a relativa paz estabelecida na região e o crescente volume de negociações lícitas e ilícitas, transformaram Rio Grande num porto de oportunidades muito lucrativas. No entanto, o ambiente inóspito que, no primeiro momento, era mais do que oportuno, agora, torna-se um incomodo a ser superado por aqueles que fazem da cidade um lar e não uma barricada na geografia da região.
É neste sentido que Rosa sintetiza o século XIX rio-grandino em duas palavras: “velocidade e mudança” (2012, p. 54). Foi, pois, ao longo dos oitocentos que a paisagem da cidade sofreu grandes transformações, onde buscou-se subjugar as condições inóspitas que, outrora, se apresentavam como trunfos e que, agora, eram incompatíveis com o conforto e as necessidades de uma cidade centrada na atividade mercantil marítima. E a mão responsável pelas transformações não foi tanto a da Câmara local que contava “com rendimentos que não garantiam, sequer, a sua própria manutenção” (QUEIROZ, 1987, p. 157), mas o “que mais contribui para a prosperidade de S. Pedro [foi] o espírito de associação de seus negociantes, os quais empregam grande parte das fortunas em empresas de utilidade pública, tentando atrair o comércio estrangeiro, assim como modificar, por obras importantes, os graves inconvenientes de uma situação tão desagradável quanto pouco cômoda que apresenta sua cidade” (ISABELLE, 1983, p. 78).
É importante notar a presença desses estrangeiros na cidade, pois, foram eles os maiores empreendedores com o estabelecimento de casas de comércio, de empresas de importação e de exportação, de empresas de capital comercial, dos serviços de transporte e de comunicação, de empresas comerciais (MARTINS, 2006, pp. 81-92). Mas não apenas isso, pois, foi por iniciativa estrangeira, especialmente, que unidades fabris começaram a se estabelecer na última metade do século XIX (COPSTEIN, 1975, p. 42). A indústria papareia – e a gaúcha – surge com “investimentos de capital acima da média e pouca diversificação de ramos, sendo os que mais se destacavam no Município o da tecelagem, charutos, conservas alimentícias, somando em 1913 cerca de 18 indústrias” (PAULITSCH, 2003, p. 55).
Com o final dos novecentos e o raiar do século XX, uma série de indústrias de alto investimento de capital se instalam na cidade, acrescendo à paisagem da cidade muitas chaminés.
A primeira década do século XXI reservou um novo lastro de esperança para os papareias. O governo federal estabeleceu uma política voltada para a consolidação de uma indústria naval nacional e Rio Grande acabou recebendo um expressivo Polo Naval. O impacto nos números – a renda média aumentou, houve um período de pleno emprego – foram objeto de interesse de diversos órgãos de imprensa60. A primeira obra do Pólo Naval do Rio Grande foi a P-53, da Petrobrás, “que se constituiu na maior e mais moderna plataforma do tipo FPU (Floating Production Unit, ou Unidade de Produção Flutuante) da empresa” (DOMINGUES, et al., 2013, p. 948) e, em outubro de 2010, é inaugurado o dique seco (Figura 34) para que a P-55 fosse construída (TORRES, L, 2015, p. 68).
Não obstante, em 2014, a midiática Operação Lava a Jato da Polícia Federal é deflagrada e os contratos da Petrobrás com diversas empresas, inclusive que atuam no Polo Naval do Rio Grande, ficam sob suspeita. Notícias recentes63 parecem exaurir o lado positivo da dimensão econômica e, novamente, “a cidade se vê refém de uma mega-projeto exógeno (como o Distrito Industrial)” (ibidem).
SOBRE A PESQUISA
A pesquisa centrou-se na cidade do Rio Grande, no Rio Grande do Sul, que vive sob a sombra de um passado que é rememorado e narrado com pompa e cheio de êxitos. É uma cidade que se identifica como histórica, a mais antiga do estado (1737); com a primeira igreja ( 1755); a primeira Câmara de Vereadores (1751); além da Câmara de Comércio mais antiga do Rio Grande do Sul e a quarta do Brasil (1844); sem esquecer da mais antiga instituição cultural gaúcha, a Bibliotheca Rio-Grandense (1846); e, claro, terra do Sport Club Rio Grande, o clube de futebol mais antigo do país em atividade (1900); além de ser o berço da industrialização gaúcha (1873). Portanto, nós, rio-grandinos, acabamos crescendo sob o espectro de um passado que, nos dizem, é sensacional, é maravilhoso – ao menos no papel – e – fora dele – edificações como a imponente Alfândega, o antigo Quartel que, atualmente, abriga a Prefeitura Municipal e alguns sobrados de famílias tradicionais parecem corroborar tal história. Mesmo assim, há uma latente “necessidade de mudança, de algo novo” presente no imaginário local, mas que não chega e acaba se transformando “em frustração para a maior parte da população rio-grandina” (MARTINS, 2006:227-228).
Se nosso passado é tão rico quanto aparenta, qual a necessidade de se buscar em algo novo, não em nós mesmos, os alicerces necessários para a consolidação do padrão de vida que os rio-grandinos desejam? Por que parece não haver correspondência entre o que se diz e o que nos tornamos? Um ponto claro é o de que, ao mesmo tempo em que nos deleitamos com os ícones deixados pelos nossos antepassados, ignoramos uma enorme quantidade de edificações – que também nos remetem a uma ideia de passado – e que se encontram abandonadas ou, ao menos, vazias de vida, em ruínas, permanecendo, aparentemente, ignoradas pela população local. Nesse sentido, tendo ciência do alerta de James Deetz de que “quando vivemos nossa vida em comparação com uma visão distorcida do passado, nossa situação presente aparenta muito mais desesperadora do que realmente é” (1996:255), tomei como objetivo principal dessa pesquisa a proposição de usar as ruínas espalhadas pela cidade em nosso favor, enquanto um contraponto ao que a cidade construiu sobre si mesma.
Um passado ainda presente, mas desqualificado pela narrativa historicista. Andar pelas ruas do Rio Grande é esbarrar em ruínas que brotam conforme os passos são dados. Atrás das calçadas, elas se escondem do olhar que mira apenas o idealizado. Assim, ao longo da pesquisa, busquei por elas, registrando, ao final do trabalho, 194 Unidades Analíticas – que também correspondem às 194 fotografias da exposição – em mais de 240 quarteirões prospectados, em pouco mais de 56 Km de ruas inseridas numa área de interesse de mais de 3 km². A minha cidade é cinza.
Arqueologia da Cidade Cinza:
paisagem e discurso na cidade do Rio Grande
SOBRE OS LAMBE-LAMBES
Todos os pôsteres foram identificados com o nome do projeto de pesquisa, o logo da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Programa de Pós-Graduação em Arqueologia do Museu Nacional, bem como uma indicação da galeria virtual Rio Grande Cinza.
Os lambe-lambes foram impressos em folha ofício e colados com grude, cola orgânica e artesanal produzida com água, farinha de trigo e vinagre branco. Em alguns locais pretendidos, não foi possível colar os lambe-lambes devido à concorrência com propagandas de estabelecimentos comerciais e de serviços, bem como, na minoria das vezes, devido às condições físicas dos postes que impossibilitavam o trabalho. De qualquer forma, tentou-se colar os pôsteres, sempre que possível, à altura dos olhos, facilitando a percepção, ou, então, em pontos de destaque. Inevitavelmente, em alguns momentos, usou-se antigos pôsteres – rasgados ou com indicação de datas pretéritas – para facilitar a aplicação do lambe-lambe sobre o poste.
SOBRE AS INTERVENÇÕES URBANAS
Além da exposição de fotografias e da colagem de lambe-lambes, a instalação de 10 intervenções urbanas ao longo da área de estudo fez parte das atividades da pesquisa. Esta etapa aconteceu ao longo de seis dias, entre 12 e 17 de agosto de 2015, e consistiu nas seguintes atividades: instalação, verificação e manutenção. A instalação, como o nome sugere, foi a atividade de colocar, pela primeira vez, os adesivos no ponto designado. Para tanto, fez-se uso de uma trincha retangular e de um pano de algodão para a devida limpeza da calçada antes da colagem dos adesivos. A verificação consistiu na averiguação das condições da instalação, uma vez por dia, de todos os pontos ao longo do período mencionado. A manutenção, por fim, correspondeu à atividade de troca ou reposição de adesivos que, por ventura, tivessem sido descolados em função das condições climáticas ou de ação humana.
SOBRE OS VÍDEOS PROMOCIONAIS
Com o intuito de reforçar a divulgação da exposição, à época da pesquisa (em 2015), foram criados dois vídeos promocionais que contém imagens registradas durante a pesquisa e que contam com trilha sonora de bandas autorais da cidade do Rio Grande.
SOBRE O AUTOR
Felipe Tramasoli é Bacharel em Arqueologia pela Universidade Federal do Rio Grande e Mestre em Arqueologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – oportunidade em que criou esta exposição – e, atualmente, faz o doutorado no Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS. Gosta de fazer muitas coisas, entre elas, fotografar, jogar vídeo-games, desenhar, tocar contra-baixo com seus amigos na Synposion e, claro, Arqueologia. Pesquisa as coisas ditas “contemporâneas”, as paisagens, o pensamento arqueológico e é um entusiasta da comunicação científica. Em 2020, começou a produzir o PMA – Pequeno Manual de Arqueologia, um podcast criado para abordar as questões que envolvem essa ciência, disponível em Spotify, Apple Podcasts e Google Podcasts.
SOBRE ESSA A NOVA VERSÃO
Oi, tudo bem?
Caso tu já conheças o projeto, sabes que este site não corresponde à versão original que contém a exposição virtual de fotografias RIO GRANDE CINZA. Mas não te preocupa! Conforme eu afirmei na dissertação da qual a exposição surgiu, ela nunca será tirada do ar (se depender de mim, né wordpress?). Inclusive, se tu não conheces ainda e tá com curiosidade, podes acessar clicando aqui embaixo no logo da primeira versão:
Mas, então, por que uma versão nova?
No ano de 2020 eu criei um site para mim – que tu podes conhecer clicando aqui -, quando resolvi que precisava de um lugar para colocar meus projetos – inclusive coisas relativas à minha pesquisa de doutorado que está sendo conduzida no Programa de Pós-Graduação em História da Escola de Humanidades da PUCRS. Decidi, então, aproveitar a oportunidade – já que agora estou pagando pelo serviço, e não mais usando uma plataforma gratuita como fiz para o mestrado, juntar tudo num mesmo lugar, de modo que a própria manutenção de todos os projetos seja facilitada. Além disso, o novo serviço me permitiu criar uma nova versão da galeria, onde eu teria a opção de incluir mais dados e informações sobre a pesquisa. E optei por não meramente incorporar a antiga à nova, pois 1) a primeira versão foi concebida para a pesquisa do mestrado e 2) a manutenção das duas versões acaba por preservar os diferentes contextos em que foram concebidas, cada uma tem seus méritos, seu tempo.
Essa nova versão, portanto, pode ser considerada como uma edição revista e ampliada daquele site original. Embora os dados do Livro de Visitas não tenham sido importados, continuam apenas no site original, os textos explicativos foram expandidos, mapas e imagens foram incorporadas e outras atividades relacionadas à pesquisa e à galeria foram adicionadas aqui também.
Dito isso, resta desejar a todos que possam aproveitar de novo – ou pela primeira vez – esta experiência.
Porto Alegre, 13 de agosto de 2020.
REFERÊNCIAS
BANDEIRA, J. & LAGO, P. C. d. 2013. Debret e o Brasil: obra completa (1816-1831). Rio de Janeiro: Capivara.
CASTELLO-BRANCO, C. 1868. Em mosaico e sylva de curiosidades historicas, litteraris e biographicas. Porto: s.n.
DEETZ, J., 1996. In Small Things Forgotten: an archaeology of early American life. Rev. and expanded ed. ed. New York: Anchor Books.
COPSTEIN, R. 1975. O trabalho estrangeiro no município do Rio Grande. Boletim Gaúcho de Geografia, 4 (maio), pp. 1-46.
HUGILL, S. 1994. Shanties from the seven seas – shipboard work-songs and songs used as work-songs from the great days of sail. Mystic: Mystic Seaport Museum.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (Brasil). Portal cidades. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rs/rio-grande/panorama. Acesso em: 9 de jun. de 2020.
ISABELLE, A. 1983. Viagem ao Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro Ed.
LUCCOCK, J. 1975. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia.
MARTINS, S. F., 2006. Cidade do Rio Grande: industrialização e urbanidade (1873-1990). Rio Grande: Editora da FURG.
PAULITSCH, V. 2003. Rheingantz: uma vila operária em Rio Grande – RS. Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas: UNICAMP.
QUEIROZ, M. L. B. 1987. A vila do Rio Grande de São Pedro, 1737-1822. Rio Grande: Editora da FURG.
ROSA, L. A. S. d. 2012. Vinda sobre as ondas, de volta para o mar: um estudo de arqueologia da paisagem sobre a inserção e usos da modernidade nos confins do Brasil
meridional. Monografia de conclusão de curso (Bacharelado em Arqueologia). Rio Grande: FURG.
SAINT-HILAIRE, A. d. 1999. Viagem ao Rio Grande do Sul, 1820-1821. Belo Horizonte: Itatiaia.
TORRES, L. H. 2015. História do município do Rio Grande: fundamentos. Rio Grande: Pluscom.
TORRES, R. d. O. 2010. “…e a modernidade veio a bordo”: Arqueologia histórica do espaço marítimo oitocentista na cidade do Rio Grande/RS.. Dissertação (Mestrado em
Memória Social e Patrimônio Cultural). Programa de Pós-Graduação em Memória e Patrimônio. Pelotas: UFPEL.